Na Babilônia antiga a chegada do ano novo era celebrada com a dramatização ritual do mito da fundação do mundo em que Marduk, o deus da renovação e da ordem cósmica, vencia Tiamat, o dragão infernal, personificação do caos primordial. Narra o mito que, depois de encarniçada luta, Marduk dividiu em duas partes Thiamat e, com as duas metades fez o céu e a terra, para, em seguida, fazer o ser humano com o sangue do demônio Kingú misturado com terra. Mircea Eliade, grande historiador e filósofo da religião, assim interpreta o mito: “a luta entre os dois grupos de figurantes repetia a passagem do ‘caos’ ao ‘cosmos’, atualizava a cosmogonia. O acontecimento mítico se fazia de novo presente”. O presidente, oficiante, exclamava: “que ele possa continuar a vencer Tiamat e abreviar seus dias!” Continua Mircea Eliade: “O combate, a vitória e a criação tinham lugar naquele mesmo instante, hic et nunc”. A vibração do povo era intensa.
Foi nesse contexto que o povo de Israel, no exílio, aprofundou a fé na criação do céu e da terra tal como aparece no primeiro capítulo do Gênesis. Não há luta, apenas a palavra de Deus: “Deus disse” e tudo se fez. No homem nenhuma mistura de bem e mal, mas só bem: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança”. A desordem - o caos - entrou no mundo pela liberdade do ser humano seduzido por outra criatura que, antes dele, já introduzira na criação o vazio do mal.
A vitória sobre o mal se dá no coração da história pelo triunfo do amor sobre o ódio e o egoísmo - sobre o pecado - que introduzem permanentemente no mundo a desordem, a morte. Nós, cristãos, professamos nossa fé em Jesus Cristo, o Filho enviado pelo Pai, que, pela sua páscoa, venceu definitivamente o pecado e a morte. Em nossa liturgia celebramos essa vitória e nos apropriamos dela, aqui e agora, até que ela se complete para a história como um todo. Enquanto não chega esse tempo, estamos todos, cristãos e não-cristãos, empenhados em dramática luta contra o mal na esperança da libertação definitiva. São Paulo, ao descrever a situação da criação de Deus escravizada pelo pecado e esperançosa de libertação, afirma: “Com efeito, sabemos que toda a criação, até o presente, está gemendo como que em dores de parto, e não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos em nosso íntimo, esperando a adoção filial, a redenção de nosso corpo”(Rom 8, 19-23). A copa do mundo está começando. O Brasil inteiro estará assentado diante dos aparelhos de TV. A vitória é intensamente desejada. Os jogadores – se o Brasil ganhar -, serão transformados em heróis nacionais, deuses do futebol. Por um momento o tempo dará lugar à eternidade. Os vitoriosos, jogadores e torcedores, serão banhados por sua luz, terão suas almas lavadas, estarão em estado de graça.
O prêmio será a taça levantada para a contemplação dos olhos ávidos de felicidade e de glória. Os vencidos, de olhos baixos, se entregarão ao choro. Como é ruim, frustrante, a derrota! É assim que a disputa esportiva revive, na força da dramatização ritual-simbólica, o drama profundo da existência humana. Há uma batalha de fundo em que todos estamos metidos e que não admite derrota. Esta seria a destruição e a morte definitiva. Marx havia pensado que a religião era tão somente a expressão simbólica de aspirações não realizadas na vida real, a solução fantástica de problemas reais, a compensação transcendente para frustrações históricas. Nós pensamos que a dimensão religiosa é a mais profunda dimensão da existência humana. O mal deve ser vencido desde as raízes mais profundas do ser humano. Sozinhos, não venceremos; precisamos de redenção, da graça de Deus e temos que lutar articulados, em equipe, por um projeto maior, sem estrelismos, sabendo que a vitória é possível e está ao nosso alcance. É preciso, entretanto, ter garra, dar a vida, o sangue, durante todo o tempo da partida. Assim nos ensina Jesus: “quem quiser salvar sua vida – sua pele - perdê-la-á e quem perder sua vida por causa de mim, salvá-la-á” (Lc 9,24).
Não podemos repetir na vida os erros que os derrotados cometem nas disputas esportivas. Ninguém recebe a coroa - a taça - antecipadamente e ninguém vence sozinho. A vitória é obra coletiva, garantida por Deus para aqueles que lutam, com garra e inteligência, até o fim. Oxalá eu possa, quando soar o apito final, repetir com São Paulo: “combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça, que me dará o Senhor, justo juiz, naquele Dia; e não somente a mim, mas a todos os que tiverem esperado com amor sua Aparição”( II Tm 4,7s.).
Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues
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